sexta-feira, junho 08, 2007
Fragmentos - I
Ele foi cavando, foi cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distracção do ofício que amava, percebeu que cavara de mais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que, sozinho, não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enlouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardas. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia mais um som humano, embora o cemitério estivesse cheio dos pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: «O que é que há?» O coveiro então gritou, desesperado: «Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!». «Mas coitado!» - condoeu-se o bêbado. - «Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra toda de cima de você, meu pobre mortinho!». E, pegando na pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.
Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem se apela (Millôr Fernandes)
 
Postado por Rui Goulart em 6/08/2007 |


1 Comments:


  • 09 junho, 2007 00:07, Anonymous Anónimo

    (...)
    Mas continuo inocente, acho.
    Ou burro, bobo, ou borracho.
    Pois toda noite eu vejo todo dia
    Tudo que é estranho, raro, ou anomalia:
    Padres sibilas
    Hidras estruturalistas
    Ministros gorilas
    Avis raras feministas
    Políticos de duas cabeças
    Unicórnios marxistas
    Antropólogas travessas
    Mactocerontes psicanalistas
    Cisnes pretos arquitetos
    Economistas sereias
    Democratas por decreto
    E beldades feias
    Que invadem a minha caverna
    E me matam de aflição
    Saindo da lanterna
    Da televisão.

    Poemeu - A superstição é imortal
    Millôr Fernandes